Rosangela é uma imigrante brasileira que deixou para trás uma carreira na indústria farmacêutica e hoje sonha poder ter um emprego fixo; Danilo dedica a vida à luta contra a precariedade laboral, mas sempre teve salários baixos; Alice, Guiomar, Rui e António estão desempregados, são mulheres e homens atirados para a margem.

Todos com mais de 45 anos, têm em comum uma vida de trabalho em cima e partilham a dificuldade em encontrar um emprego com um salário digno, que lhes pague as contas.

Se não
fosse o que
guardei,
não
sobrevivia

Se não
fosse o que
guardei,
não
sobrevivia

António Agostinho gosta de ser daquelas pessoas que sabem fazer tudo. Qualquer bricolage, qualquer conserto. É um homem calmo, marido há um par de décadas e pai de dois rapazes. Orgulha-se do que tem, do que conquistou. Quando, há 18 anos, comprou a casa onde vive, na aldeia do Sobreiro, em Mafra, esta era muito velha, toda em madeira. Ainda hoje, as portas são baixas, como nas casas antigas, e a estrutura não permite levantá-las. Ainda hoje, António vai dando um jeito, aqui e ali, no que está por acabar.

Descontei toda a minha vida. Tinha 13 ou 14 anos e nas férias da escola já ia aprender o ofício da reparação, com um cunhado que era ajudante numa casa de restauros.

Agora tenho quase 59 e para me darem alguma coisa... Quando fiquei desempregado, disseram-me logo: não tinha direito ao fundo de desemprego, porque trabalhava por conta própria. Era o patrão, mas também pagava a minha caixa, pagava os meus seguros, pagava tudo.

É o nome comummente usado para referir o Subsídio de Desemprego. Pode receber este subsídio da Segurança Social quem, involuntariamente, deixou de ter um contrato de trabalho pago e está inscrito no centro de emprego. Corresponde a 65% do salário médio recebido no ano anterior à situação de desemprego, podendo variar entre 435,76 e 1089,40 euros, para trabalhadores por contra de outrem. Há regras específicas para trabalhadores independentes, empresários em nome individual e gestores e administradores de empresas. Fonte Fonte

Agora recebo o Rendimento Social de Inserção: 190 euros, porque tenho um filho menor a estudar e a minha mulher, nas limpezas, não ganha o ordenado mínimo.

É um subsídio atribuído pela Segurança Social a cidadãos considerados em situação de pobreza extrema inscritos no centro de emprego. Os cálculos destes valores variam consoante o agregado familiar. Fonte

Se a gente for fazer bem as contas nem chegam a entrar 380 euros por mês nesta casa.

É um valor de rendimentos abaixo do qual o Instituto Nacional de Estatística considera que alguém é pobre: 6014 euros anuais em 2018, o equivalente a 501,16 euros por mês. Fonte

Pertenço à Gracieira, freguesia A-dos-Negros, no concelho de Óbidos, mas fui para as Caldas da Rainha com quatro anos. Fui um moço como todos: tudo o que era rebeldia, malandrices… Jogávamos à bola, ao berlinde, ao pião, íamos à fruta, fazíamos as festinhas da rua por altura do Santo António.

Fiz a quarta classe já adulto, tive uma explicadora que me levou ao exame em Leiria, e lá me deram o diploma. Éramos sete irmãos e não podia sobreviver dos meus pais.

Fui estafeta em farmácias, ia buscar medicamentos aos armazéns, e depois trabalhei numa estação de serviço, já com descontos para a Segurança Social – achava eu. Há uns tempos, cheguei à conclusão que esses três anos não contaram para a reforma. Temos confiança nas pessoas... É um patrão, uma pessoa da autoridade e pensamos que está tudo legal.

O valor atribuído na reforma depende dos descontos que se fazem para a Segurança Social ao longo da carreira. No caso dos trabalhadores dependentes, o contratado paga 11% do salário e a entidade empregadora 23,75%, cabendo a esta última a entrega das contribuições à Segurança Social. Fonte

Andei depois em duas fábricas – numa de ferro, noutra de aço – conhecidas na zona, e acabei nas obras.

Era o que dava mais, na altura, para moços como eu. Tinha vinte e poucos.

Passei várias férias em Mafra, com uma irmã que era caseira de uns senhores. Agradou-me o ar, a gente, as festas – enquanto na minha terra em todo e qualquer baile se pagava à entrada, aqui não, dava-se o que se queria.

Comecei como servente numa firma, a Cabazadas, mas, em pouco tempo, vi que não era para mim. Andávamos a fazer um buraco de três metros por três metros numa casa antiga... Tive medo. Por azar, logo quando saí, houve um acidente grande e a casa caiu. Ficaram pessoas lá dentro. Ainda bem que eu… Não sei se foi pressentimento, o que é que foi…

Depois, disse-me um amigo que precisavam de malta nas cerâmicas. Não tive mais nada: fui lá pedir trabalho. A gente aprende facilmente a ver os outros fazer.

Depois, disse-me um amigo que precisavam de malta nas cerâmicas. Não tive mais nada: fui lá pedir trabalho. A gente aprende facilmente a ver os outros fazer.
Foram cinco anos como forneiro, a descansar um dia em sete, até que outra fábrica fez uma oferta para ficar comigo. Estive 12 anos nesse serviço, na Cerâmica dos Leitões.

Não me casei logo com a Fernanda, estivemos cinco anos juntos para ver se realmente a coisa dava.

Ainda andámos às turras, mas lá decidimos juntar os trapinhos. E tornei para a construção.

E tornei para a construção.

Trabalhei para vários companheiros aqui na zona: nas pinturas, canalização, eletricidade. Mas certas firmas desapareciam antes de pagarem tudo. A gente fazia a obra, entregavam-nos um sinal no início, no meio, e o do final nunca vinha. Para eles, era só receber, só receber; quando chegava a altura de pagar, já estava tudo gasto. Até as ferramentas, que a gente pensava em roubar, eram emprestadas. Uma firma ficou a dever-me quatro meses.

Trabalhei muito para aquecer nesses anos. Até que fui abrindo os olhos.

Cheguei à conclusão de que eu é que tinha que ser o meu patrão e dediquei‑me à remodelação. Tinha que controlar tudo, fazer orçamentos e, a certa altura, tinha funcionários a trabalharem para mim. Era mais responsabilidade, era. O patrão vem para casa e tem de continuar a trabalhar. Mas eu gostava.

Até que tive de dispensar gente, já não dava.

O valor da mão de obra reduziu muito, porque pagava-se a dois brasileiros o que se dava a um português.

Depois, de 2008 para a frente, parou tudo. Muitos pagamentos nunca chegaram.

Não gosto de fazer uma casa de raiz. O que me agrada é remodelar; mudar aqui, mudar acolá.



Tudo o que vê aqui em casa, fui eu que remodelei.



Há 18 anos, quando cedemos a comprar uma casa, não havia facilidade dos bancos em dar empréstimos, então viemos para cá e foi-se fazendo.

Não gosto de fazer uma casa de raiz. O que me agrada é remodelar; mudar aqui, mudar acolá.
Tudo o que vê aqui em casa, fui eu que remodelei.
Há 18 anos, quando cedemos a comprar uma casa, não havia facilidade dos bancos em dar empréstimos, então viemos para cá e foi-se fazendo.

Hoje, ainda há coisas por acabar. Sem pressa.

Hoje, ainda há coisas por acabar. Sem pressa. Não gosto de estar fixo. Sou tipo um pássaro: gosto de saltitar de sítio para sítio. Até isto me acontecer, quase nunca tinha medo.

António descreve o corpo como se fosse a estrutura de um prédio.

De repente, tudo extraviou. Houve um curto circuito no organismo e rebentou.

De repente, tudo extraviou. Houve um curto circuito no organismo e rebentou.
Afetou-me os ouvidos, o lado esquerdo e, principalmente, o cérebro. Tive um princípio de AVC, em 2012, e ficou tudo atrofiado.

Raciocinar já não é o que era. Canso-me a ler. A rapidez, a concentração... isso para mim acabou, tem de ser uma coisa de cada vez. Foi stresse a mais, tensão alta, o sistema nervoso com tanta coisa junta…
Eu nunca ia ver a tensão...
Gosto do comer bem temperado e tive de deixar isso. Passei a beber descafeinado.

Às vezes, ainda me dá formigueiros e uns apertos no coração. Até o oiço – tum-tum, tum-tum –: “Será que me está a dar outra vez?”

Os médicos não me dão garantias nenhumas. Estão a tentar vários tratamentos para que isto não se desenvolva muito, mas não preveem cura. A médica de família disse-me: ou era operado com alto risco, podendo até deixar de andar, ou mantinha-me assim como estou.

Já lhe pedi para ir ao médico do cérebro, mas ainda não fui. Achei que podia voltar a ser ativo, a ser um bocadinho aquilo que era.

Mas não. Cada vez que dou um passo para a frente, ando dois para trás.

Mas não. Cada vez que dou um passo para a frente, ando dois para trás. Não vejo grande futuro. Deixei de fazer qualquer serviço. Não dá. Não dá para fazer.

Não vejo grande futuro.

Deixei de fazer qualquer serviço. Não dá. Não dá para fazer.

A gente tem andado a apertar, a apertar, até onde der para apertar. Vendo sucata – de desmanchar televisões, frigoríficos, máquinas de lavar –, mas o que ganho não dá para as despesas diárias.

A gente tem andado a apertar, a apertar, até onde der para apertar. Vendo sucata – de desmanchar televisões, frigoríficos, máquinas de lavar –, mas o que ganho não dá para as despesas diárias.

Ainda no outro dia, fiz as contas com a minha mulher: chegámos a vender ferro velho a 20, 18, 17 cêntimos o quilo – dava para umas coisitas –, agora, no máximo, o quilo vende‑se a dez. Isso dá para quê?

Não posso ir a um café, ir a certos sítios, porque tudo é caro e já não basta para o que a gente tem mesmo de comprar para comer.

Há uns tempos tive de ir a uma consulta ao privado e foram logo 60 euros…

* Para pagar a consulta, António teria que vender 600kg de ferro velho, 8 vezes o seu peso.

Se não fosse o dinheiro que tinha juntado, hoje não conseguia sobreviver. Agora não se junta, mantêm-se as dívidas.

Agora não se junta, mantêm-se as dívidas.

Este ano, foi melhorzito: os livros do meu filho de 15 anos foram gratuitos e reduziram o preço da alimentação lá na escola. Por estar desempregado, também tenho direito a um desconto na luz e na companhia da água.


Tem direito a um desconto na factura mensal da água, do gás e da electricidade, qualquer pessoa que seja beneficiária do Subsídio Social de Desemprego e do Rendimento Social de Inserção. Fonte | Fonte

Não pago as consultas no hospital, mas tenho de ser assistido num lado e a Fernanda noutro, e isso tudo são despesas. Agora aconteceu-me o pior: o meu carro avariou-se, a parte elétrica pifou e vai ser um trinta e um para arranjar aquilo. Não sei como é que vai ser…

Agora aconteceu-me o pior: o meu carro avariou-se, a parte elétrica pifou e vai ser um trinta e um para arranjar aquilo. Não sei como é que vai ser…

António e Fernanda iam a caminho de uma consulta em Lisboa, onde os esperávamos, quando o carro os deixou parados no meio da estrada. A consulta foi remarcada para uns meses depois. O carro vai-se vendo, com jeitinho, como será arranjado.

Não tenho uma baixa médica provisória porque a médica de família não me passa.

Não tenho uma baixa médica provisória porque a médica de família não me passa.

– Não sei porquê, não percebo nada. Só sei que não consigo sair desta situação. Quando for ao médico a Lisboa, ao especialista, vou-lhe falar da reforma por invalidez. Mas até eles descobrirem o que é que tenho mesmo, não há nada a fazer. Está tudo do lado deles, dos médicos.

– Não sei porquê, não percebo nada. Só sei que não consigo sair desta situação. Quando for ao médico a Lisboa, ao especialista, vou-lhe falar da reforma por invalidez. Mas até eles descobrirem o que é que tenho mesmo, não há nada a fazer. Está tudo do lado deles, dos médicos.

Só sei que não consigo sair desta situação.

Quando for ao médico a Lisboa, ao especialista, vou-lhe falar da reforma por invalidez.

Mas até eles descobrirem o que é que tenho mesmo, não há nada a fazer.

Está tudo do lado deles, dos médicos.

Eu é que continuo a receber cartas para ir a entrevistas de emprego. Vou lá e a empresa carimba um papel a certificar que fui lá; se faltar, avisam o Centro de Emprego.

Mas algumas nem vale a pena ir: são empresas de construção e eu não posso andar em andaimes, em alturas. Nem posso andar a conduzir todos os dias para Rio de Mouro ou para Loures.

Na situação em que estou, não posso assumir esses compromissos, porque sei que vou falhar. Esqueço-me das coisas.

Uma vez, queriam que fosse abrir valas na estrada para condutas de água, mas faz-me confusão andar no subterrâneo.

Antigamente era diferente, agora entro em pânico. Entro mesmo em pânico.

E isso é um problema: a recusar tanta coisa, corro o risco de me cortarem o rendimento. Quando acabar, acabou. Deixo a casa, deixo as coisas todas e vou para debaixo de uma ponte – é o que me apetece dizer-lhes.

Quando acabar, acabou.

Deixo a casa, deixo as coisas todas e vou para debaixo de uma ponte – é o que me apetece dizer-lhes.

Se as pessoas do Governo sobrevivessem com o que a gente recebe, viam as coisas de outra maneira. Há aí pessoas em casa, sem fazer nada, a ganhar mais. Porque é que elas são mais do que eu?

O único momento da nossa conversa em que António diz um palavrão e a sua voz sobe de tom é quando fala de imigrantes e pessoas ciganas. Coloca-os lado a lado, num grupo que vê com mais direitos do que ele.

Cheguei a uma certa idade em que penso: “Tenho aqui mais meia dúzia de anos, porque é que me hei de estar a estragar?”

Antes, tinha a previsão de avançar na vida, conseguir fazer mais coisas; hoje não. Perdi esse andamento. Não sei o dia de amanhã.

Não sei o dia de amanhã.

Faço uns trabalhinhos aqui em casa e, às vezes, acompanho a minha mulher às limpezas, ajudo-a no que posso. Entretenho-me a desmontar umas coisas – gosto de ver como é que funcionam. Quando trabalhei com o meu cunhado ainda fiz reparações de rádios, de leitores de cassetes... Hoje em dia, está tudo tão diferente que o que a gente aprendeu já não serve para nada. E fica-se para trás.

Também não sou daquelas pessoas que vão à igreja. Moro a dez passos e se lá entrei cinco vezes foi muito. Não sei qual é a razão. Fui criado numa religião, sempre rezei, fiz catequese e, hoje, sou crente, mas gosto de rezar nos sítios apropriados. Quando chego a Fátima sinto uma paz... nem sei explicar.

Há certas alturas em que gosto de estar num cantinho, descansado. Outras não, gosto de falar, conviver.

Sou radioamador e, ao fim destes anos todos, lembrei-me e fui montar aquilo tudo outra vez. Dá para falar para todo o mundo, através de radiofonia ou em código Morse. Aqui na zona de Mafra e Lisboa, a gente junta-se muito a falar da pesca, para ensinar quem é novo nisto a mexer no rádio... E também faço contactos para França, Espanha e Alemanha, com pessoas desconhecidas, que só conheço pela estação ou pelos indicativos.

Passo algum tempo nisso para distrair a cabeça. A conversar, até se perde a noção do tempo.

Hoje em dia, temos de fazer coisas para sobreviver, não se pode fazer tudo o que se gosta. Antigamente, tínhamos tudo: agricultura, peixe, fruta de boa qualidade. Depois eles pagaram às pessoas para arrancar vinhas, oliveiras, para não produzir. E hoje temos o quê? Nas fábricas de calçado, de material, mandamos vir tudo de fora. Irmos para a União Europeia foi a pior coisa para o nosso país.

A vida era melhor antes. Na altura do escudo, ainda dava para ganhar o nosso ordenado e guardar algum dinheiro, hoje não.



Os nossos governantes não prestam para nada. Andam às turras uns com os outros, enquanto somos governados pela Europa.



Cada vez mais vejo o Governo a ceder aos patrões. Não dá segurança aos trabalhadores, porque só lhes interessa o que dá lucro.

Eu sou um dos que votam em branco. Só vou lá para eles saberem que fui.

E digo, como dizia antigamente: a minha palavra vale mais do que tudo o resto. Sou uma pessoa séria e de confiança.

Sou uma pessoa séria e de confiança.



Tenho a chave de várias pessoas de Lisboa, que têm casas para férias na Ericeira, e que ainda hoje me ligam: “Ó senhor Agostinho...”

Tenho a chave de várias pessoas de Lisboa, que têm casas para férias na Ericeira, e que ainda hoje me ligam: “Ó senhor Agostinho...” Ainda lhes faço alguns serviços; sou o desenrasca, como eles me chamam. Se toda a gente fosse como eu, não era este o mundo ou o país que tínhamos.

Ainda lhes faço alguns serviços; sou o desenrasca, como eles me chamam.



Se toda a gente fosse como eu, não era este o mundo ou o país que tínhamos.

Ao fim de uma manhã de conversa e outras tentativas de encontro, António pediu-nos para não voltarmos mais. Está cansado.

É o carro, as doenças, os problemas... Algumas perguntas ficaram por fazer: porque é que António e Fernanda têm a bandeira de Portugal à entrada de casa, e outra pintada na caravana que estacionam encostada à igreja? De onde veio o gosto por desmontar objetos? O que descobre dentro deles? O que acha que poderia ser diferente na forma como tratam a sua saúde? Porque se sente ignorado? Ao fim de uma manhã de conversa e outras tentativas de encontro, António pediu-nos para não voltarmos mais. Está cansado. Mas António não quis falar mais. “Só quero sossego.”

Mas António não quis falar mais. “Só quero sossego.”

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